Papa João XXIII e a Devoção a São José

CARTA APOSTÓLICA LE VOCIDO SUMO PONTÍFICE  JOÃO XXIII

AOS ORDINÁRIOS DOS LUGARES  E AOS FIÉIS CRISTÃOS DO MUNDO CATÓLICO  SOBRE

A DEVOÇÃO A SÃO JOSÉ,

PADROEIRO DO CONCÍLIO ECUMÊNICO VATICANO II

Veneráveis Irmãos e caros filhos

1. As vozes que, de todos os pontos da terra, chegam até nós em expressões de feliz expectativa e de votos pelo feliz êxito do Concílio Ecumênico Vaticano II, impelem cada vez mais nosso espírito a tirar proveito da boa disposição de tantos corações simples e sinceros, desejosos, com amável espontaneidade, de implorar o auxílio celeste, aumento de fervor religioso e clareza de orientação prática para tudo quanto a celebração do concílio supõe e nos promete como incremento da vida íntima e social da Igreja e renovação espiritual do mundo inteiro.

2. E eis que se nos apresenta, qual uma aparição da nova primavera deste ano e no limiar da sagrada Liturgia Pascal, a suave e amável figura de S. José, o augusto Esposo de Maria, tão caro ao íntimo das almas mais sensíveis aos atrativos do ascetismo cristão e de suas expressões de piedade religiosa, reservadas e modestas, mas tanto mais apreciadas e suaves.

3. No culto da santa Igreja, Jesus, Verbo de Deus feito homem, teve logo uma adoração incomunicável como esplendor da natureza de seu Pai, e irradiando-se na glória dos santos. Maria, sua Mãe, seguiu-o de perto desde os primeiros séculos, nas imagens das catacumbas e das basílicas, piedosamente veneradas: Sancta Maria Mater Dei. S. José, pelo contrário, excetuando algum traço de sua figura, encontrado aqui e ali nos escritos dos Padres, permaneceu durante séculos e séculos em seu característico apagamento, um pouco como figura de ornamento no quadro da vida do Senhor. E foi necessário tempo até que seu culto passasse dos olhos aos corações dos fiéis e despertasse neles singular fervor de oração e abandono confiante. E estas foram as piedosas alegrias reservadas às efusões da época moderna: oh! quão abundantes e grandiosas! E temos particular alegria em colher daí uma observação tão característica quanto significativa.

S. José na voz dos Papas dos cem últimos anos

4. Entre os diversos postulata que os Padres do Concílio Vaticano I reunidos em Roma (1869-1870), apresentaram a Pio IX, os dois primeiros eram concernentes a S. José. Antes de tudo, pedia-se que seu culto tivesse lugar mais elevado na sagrada liturgia; trazia a assinatura de 153 bispos. O outro, assinado por 43 superiores gerais de ordens religiosas, suplicava a solene proclamação de S. José como Padroeiro da Igreja Universal.

Pio IX

5. Pio IX acolheu um e outro com alegria. Desde o início de seu pontificado havia fixado a festa e a liturgia para o patrocínio de S. José no III domingo depois da páscoa. Já em 1854, em vibrante e fervorosa alocução, indicara S. José como a esperança mais segura da Igreja depois da Virgem santíssima; e no dia 8 de dezembro de 1870, suspenso o concílio Vaticano pelos acontecimentos políticos, escolheu a feliz coincidência da festa da Imaculada Conceição para a proclamação mais solene e oficial de S. José como padroeiro da Igreja universal e para a elevação da festa de 19 de março à celebração de rito duplo de 1ª classe.

 6. Foi – o daquele 8 de dezembro de 1870 – um breve, mas precioso e admirável Decreto “Urbi et Orbi”, verdadeiramente digno do “Ad perpetuam rei memoriam”, que abriu um veio de riquíssimas e preciosas inspirações aos sucessores de Pio IX.

Leão XIII

7. Com efeito, eis que o imortal Leão XIII apresenta para a festa da Assunção de 1889, com a carta “Quamquam pluries”, o documento mais amplo e copioso até então publicado por um papa, em honra do pai putativo de Jesus, elevado em sua luz característica de modelo dos pais de família e dos operários. Provém daí a bela oração: “A vós, ó Bem-aventurado S. José”, que encheu de tanta doçura nossa infância.

S. Pio X

8. O santo pontífice Pio X acrescentou as expressões do Papa Leão XIII numerosas outras de devoção e de amor para com S. José, acolhendo de bom grado a dedicatória que lhe foi feita de um tratado que ilustra seu culto, e multiplicando o tesouro das indulgências para a recitação das ladainhas, tão caras e tão doces de dizer. Como estão bem expressos os termos dessa concessão! “O santíssimo senhor nosso Pio X engrandece o ínclito patriarca S. José pai putativo, esposo puríssimo da Virgem Mãe e poderoso patrono da Igreja católica junto de Deus” – e vede que delicadeza de sentimentos pessoais – “cujo glorioso nome é aprendido desde o nascimento, e é envolvido de piedade e religião constante”. E os termos com que anunciou os motivos dos novos favores concedidos: “para cultuar S. José, Padroeiro da Igreja universal”.

Bento XV

9. Ao desencadear-se a primeira grande guerra europeia, quando os olhos de S. Pio X se fechavam à vida terrestre, eis que aparecia providencialmente o Papa Bento XV, que atravessou qual um astro benéfico de consolação universal os anos dolorosos de 1914 a 1918. Também ele quis logo promover o culto do santo patriarca. Com efeito, é a ele que se deve a introdução de dois novos prefácios ao cânone da santa missa: precisamente o de S. José e o da missa dos defuntos, associa com felicidade um e outro em dois decretos do mesmo dia, 9 de abril de 1919, como a lembrar uma concomitância e fusão de dor e de conforto entre as duas famílias: a família celeste de Nazaré, da qual S. José era o chefe legal, e a imensa família humana afligida por uma consternação universal pelas inúmeras vítimas da guerra devastadora. Que triste, mas também suave e feliz aproximação: Duma parte, S. José e de outra “o signifer sanctus Michael”: ambos apresentando as almas dos defuntos ao Senhor “na luz santa”.

10. No ano seguinte – 25 de julho de 1920 – o papa Bento XV voltava a este assunto no cinquentenário, que então se preparava, da proclamação – já feita por Pio IX – de S. José como Padroeiro da Igreja universal; e voltava numa luz de doutrina teológica com o Motu próprio Bonum Sane,  todo impregnado de ternura e singular confiança. Oh! que belo iluminar-se da suave e benévola figura do santo, que ele faz o povo cristão invocar para proteger a igreja militante, no momento mesmo em que reflorescem suas melhores energias para a reconstrução espiritual e material, depois de tantas calamidades; e para reconforto de tantos milhões de vítimas humanas que jaziam às portas da morte e para as quais o Papa Bento XV queria pedir aos bispos e as numerosas associações piedosas espalhadas pelo mundo, a intervenção suplicante de suas orações a S. José, padroeiro dos agonizantes.

Pio XI e Pio XII

11. Seguindo a mesma linha de conselho da devoção fervorosa ao Santo Patriarca, os dois últimos pontífices Pio XI e Pio XII – ambos sempre de cara e venerável memória – se sucederam numa viva e edificante fidelidade de ensino, de exortação, de fervor.

12. Pelo menos quatro vezes, Pio XI, em solenes alocuções relativas à glorificação de novos santos e, frequentemente, na ocorrência de 19 de março – por exemplo em 1928, depois em 1935 e ainda em 1937 – aproveitou a ocasião para exaltar as diferentes luzes que ornam a fisionomia espiritual do guardião de Jesus, do Castíssimo Esposo de Maria, do piedoso e modesto operário de Nazaré, e do padroeiro da Igreja universal, poderoso escudo de defesa contra os esforços do ateísmo mundial que visa a desagregação das nações cristãs.

13. Também Pio XII tomou de seu predecessor a nota fundamental no mesmo tom, em numerosas alocuções, todas tão belas, vibrantes e felizes. Como a 10 de abril de 1940 quando convidava os jovens esposos a se colocarem sob o seguro e suave manto do Esposo de Maria; e em 1945) quando convidava os membros da associação cristã dos operários a honrá-lo como elevado exemplo e defensor invencível de suas falanges; e dez anos depois, em 1955, quando anunciava a instituição da festa anual de S. José operário. Na realidade, esta festa de instituição recentíssima, fixada a 1° de maio, veio suprimir a da 4ª feira da segunda semana de páscoa, enquanto a festa tradicional de 19 de março marcará de agora em diante a data mais solene e definitiva do patrocínio de S. José sobre a Igreja universal.

14. O mesmo Santo Padre Pio XII quis ornar como que de preciosíssima coroa o peito de S. José com uma fervorosa oração proposta à devoção dos sacerdotes e fiéis de todo o mundo, e cuja recitação enriqueceu de numerosas indulgências. Oração de caráter eminentemente profissional e social, como convém àqueles que estão sujeitos à lei do trabalho, que é para todos “lei de honra, de vida pacífica e santa, prelúdio da felicidade imortal”. Diz ela, entre outras coisas: “Permanecei conosco, ó S. José, nos nossos momentos de prosperidade, quando tudo nos convida a gozar honestamente dos frutos de nossas fadigas; mas, sobretudo, permanecei conosco e sustentai-nos nas horas de tristeza quando parece que o céu quer fechar-se sobre nós e até os instrumentos de nosso trabalho vão escapar de nossas mãos”.

15. Veneráveis Irmãos e caros filhos: pareceu-nos também oportuno propor estas notas de história e de piedade religiosa a devota atenção de vossas almas, educadas na delicadeza do sentir e do viver cristão e católico, precisamente nesta data de 19 de março, quando a festa de S. José coincide com o início do tempo da Paixão e nos prepara para intenso contato com os mistérios mais emocionantes e salutares da sagrada liturgia. As disposições que prescrevem o véu sobre as imagens do crucifixo, de Maria e dos santos durante as duas semanas de preparação da páscoa, são convite a um recolhimento íntimo e sagrado, concernente as comunicações com o Senhor, por meio da oração que deve ser meditação e súplica assídua e ardente. O Senhor, a Virgem Santíssima e os Santos estão à espera de nossas confidências; e é bem natural que estas se regam ao que corresponde melhor às solicitudes da Igreja católica universal.

À espera do Concílio ecumênico

16. Ao centro destas solicitudes e em lugar preeminente encontra-se, sem dúvida, o Concílio Ecumênico Vaticano, cuja expectativa está nos corações de todos os que crêem em Jesus Redentor, quer pertençam à nossa mãe, a Igreja católica, ou a alguma das diversas confissões que dela se separaram e nas quais, entretanto, muitos estão ansiosos por uma volta a unidade e a paz, segundo o ensino e a oração de Cristo ao Pai Celeste. É muito natural que esta evocação das palavras dos Papas do último século sirva perfeitamente para suscitar a cooperação do mundo católico para o bom êxito do grande plano de ordem, de elevação espiritual e de paz, ao qual um Concílio Ecumênico é chamado.

O Concílio a serviço de todas as almas

17. Tudo é grande e digno de consideração na Igreja, tal como Jesus a constituiu. Na celebração de um Concílio, reúnem-se em torno dos padres as personalidades mais notáveis do mundo eclesiástico, dotadas de altas qualidades de doutrina teológica e jurídica, de capacidade de organização, de elevado espírito apostólico. Eis o Concílio: o papa no ápice e, em torno dele e com ele, os cardeais, os bispos de todos os ritos e de todos os países, os doutores e mestres mais competentes nos diversos graus de suas especializações.

18. Mas o Concílio é feito para todo o povo cristão que nele está interessado pela circulação mais perfeita da graça, de vitalidade cristã, que torna mais fácil e rápida a aquisição de bens verdadeiramente preciosos da vida presente e asseguram as riquezas dos séculos eternos.

19. Todos, por conseguinte, estão interessados pelo Concílio, eclesiásticos e leigos, grandes e pequenos de todas as partes do mundo, de todas as classes, de todas as raças, de todas as cores; e se um protetor celeste é indicado para conseguir do alto, em sua preparação e realização, aquele “poder divino” pelo qual ele parece destinado a marcar época na história da Igreja contemporânea, a nenhum dos protetores celestes poderia ser mais bem confiado do que a S. José, augusto chefe da família de Nazaré e protetor da santa Igreja.

20. Ouvindo de novo o eco das vozes dos Papas deste último século de nossa história, como nos acontece, tocam ainda nosso coração os acentos característicos de Pio XI, em razão também de sua maneira refletida e calma de exprimir-se. Temos ainda no ouvido um discurso pronunciado a 19 de março de 1928, com uma alusão que ele não soube, não quis calar, em honra de S. José, do caro e bendito S. José, como gostava de saudá-lo.

21. “É sugestivo, dizia ele, observar de perto e, por assim dizer, ver brilhar, uma ao lado da outra, duas magníficas figuras que se acompanham no início da Igreja: primeiramente a de s. João Batista, que surge do deserto, algumas vezes com voz forte e outras com pacífica doçura; às vezes como um leão que ruge e outras como o amigo que se alegra com a glória do esposo e oferece aos olhos do mundo o esplendor maravilhoso de seu martírio. Em seguida, a figura tão vigorosa de Pedro, que ouve do Divino Mestre as magníficas palavras: `Ide e pregai a todo o mundo’; e para ele, pessoalmente: `Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja’. Grande missão, divinamente faustosa e retumbante”.

22. Assim falava Pio XI. Prosseguia depois, e com quanta felicidade: “Entre estes dois grandes personagens, entre estas duas missões, eis que aparecem a pessoa e a missão de S. José que, ao contrário, passam apagadas, silenciosas, como que despercebidas e ignoradas, na humildade, no silêncio, silêncio que não devia iluminar-se senão mais tarde, silêncio ao qual deveriam suceder, e muito alto, o grito, a voz, a glória nos séculos”.

23. Oh! a invocação, oh! o culto de s. José para a proteção do Concílio Ecumênico Vaticano II.

Veneráveis irmãos e caríssimos filhos de Roma, irmãos e filhos muito amados do mundo inteiro. É a este ponto que desejamos vos conduzir, enviando-vos esta Carta Apostólica justamente no dia 19 de março, em que a celebração da festa de s. José, Padroeiro da Igreja universal, podia servir às vossas almas de incentivo a uma renovação extraordinária de fervor para a participação, por meio de oração mais viva, ardente e contínua, nas solicitudes da santa Igreja, mãe e mestra, que ensina e dirige este acontecimento extraordinário do XXI Concílio Ecumênico e Vaticano II, do qual toda a imprensa pública mundial se ocupa com vivo interesse e respeitosa atenção.

24. Bem sabeis que a primeira fase de organização do Concílio prossegue em atividade pacífica, laboriosa e corsoladora. Por centenas, insignes prelados e eclesiásticos, vindos de todas as regiões do mundo, se sucedem aqui em Roma, distribuídos em diferentes secções bem organizadas, cada uma entregue ao seu trabalho particular, seguindo preciosas indicações contidas numa série de imponentes volumes que exprimem o pensamento, a experiência, as sugestões recolhidas pela inteligência, pela sabedoria, pelo vibrante fervor apostólico daquilo que constituiu a verdadeira riqueza da Igreja católica do passado, do presente e do futuro. O Concílio Ecumênico não pede para sua realização e seu êxito senão luz de verdade e de graça, disciplina de estudo e de silêncio, paz serena dos espíritos e dos corações. Isto de nossa parte humana. Vem do alto o auxílio celeste que o povo cristão deve implorar com sua viva cooperação pela oração, por um esforço de vida exemplar que seja antecipação e exemplo da disposição bem resoluta, da parte de cada um dos féis, de observar depois as instruções e as diretrizes que serão proclamadas na conclusão tão desejada do grande acontecimento, que já segue curso feliz e promissor.

25. Veneráveis Irmãos e caros filhos.

O luminoso pensamento do Papa Pio XI a 19 de março de 1928 segue-nos ainda. Aqui de Roma, a sagrada catedral de Latrão resplandece sempre na glória de S. João Batista. Mas no maior templo de S. Pedro, onde são veneradas preciosas lembranças de toda a cristandade, há também um altar de s. José; e desejamos e propomos na data de hoje, 19 de março de 1961, que o altar de s. José seja revestido de novo esplendor, mais amplo e mais solene; e se torne um ponto de atração e de piedade religiosa para cada uma das almas e inumeráveis multidões. É sob as abóbadas celestiais da basílica vaticana que se reunirão em torno do chefe da Igreja as falanges dos componentes do colégio apostólico vindos de todos os pontos do globo, mesmo os mais distantes, para o Concílio Ecumênico.

26. Ó S. José! Aqui, aqui mesmo é vosso lugar de “Protetor da Igreja universal”. Quisemos apresentar-vos, através das palavras e dos documentos de nossos predecessores imediatos dos últimos séculos – de Pio IX a Pio XII – uma coroa de honra, como eco dos testemunhos de afetuosa veneração que se eleva igualmente de todas as nações católicas e de todas as regiões missionárias. Sede sempre nosso protetor. Que vosso espírito interior de paz, de silêncio, de bom trabalho e de oração, a serviço da santa Igreja, nos vivifique sempre e nos alegre em união com vossa Santa Esposa, nossa dulcíssima Mãe Imaculada, num fortíssimo e suave amor a Jesus, Rei glorioso e imortal dos séculos e dos povos. Assim seja.

Dado em Roma, junto de s. Pedro, a 19 de março de 1961, terceiro de nosso Pontificado.

JOÃO PP. XXIII

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